quinta-feira, 29 de maio de 2014

Noite

E quando a noite caiu, ainda estávamos juntos, nesse canto etéreo do universo onde nos sentamos, um em frente do outro, ambos descalços, para não pisar o verso dos poemas com que forramos o chão. 
Esses poemas, de que nunca poderíamos ser personagens.

terça-feira, 27 de maio de 2014

Das penas

A pomba entregou a sua mensagem. 
Deixou-a cair quase aos meus pés, de tão perto que estávamos.
Foi a primeira da formação, porque, suponho, quem me conhece os hábitos saberá que sou melhor a chegar a horas do que a ficar até ao final.
Não faltou o nome de código, versão murmúrio, o gesto a condizer. 
A mão esquerda no coração, a cujas janelas se assoma a pomba que traz a mensagem. 
Foi perfeito e não serei ingrata.
Reconheço o valor do empenho nos bastidores de tão formidável encenação. 
Um telefonema? Dez telefonemas?  
Acho que noutros tempos teria desmaiado de emoção.
Mas os tempos são estes. Tornei-me uma pessoa de gostos simples.
A verdade desnuda do silêncio não se cobre no veludo das cortinas de opereta.








Metade de qualquer coisa

sábado, 24 de maio de 2014

Poeta en el mar

Se recuperei a plena propriedade da senhora lua; retive em segredo duas ou três estrelas; fiz minhas as ondas do mar sobejante e até me devolveram a superfície das ilhas, não vejo razões objetivas para continuar a partilhar os direitos de utilização dos acordes da guitarra de Vicente Amigo.
Hoje, tocará apenas para mim. 

quinta-feira, 22 de maio de 2014

Inventário humano deste navio de acordo com os registos históricos

Mais ou menos por ordem de chegada:

- Oito homens, de cuja existência me tinha esquecido;
- Sete ex-presidiários, sem história individual; 
- Gualtiero, o Italiano, ex-porta voz dos presidiários, convertido a mordomo pessoal;
- Andrihmnir, o cozinheiro Pirata;
- Cinco mulheres, todas bloggers;
- Dois poetas, um deles blogger;
- Um gigante;
- Álvaro de Campos;

Inominável


O Inominável

"Nunca
dos nossos lábios aproximaste 
o ouvido, nunca
ao nosso ouvido encostaste os lábios;
és o silêncio,
o duro espesso impenetrável
silêncio sem figura.
Escutamos, bebemos o silêncio
Nas próprias mãos
E nada nos une
- nem sequer sabemos se tens nome."

Eugénio de Andrade


"Devo falar agora de nós...
Isso seria um passo
Na direção do silêncio"

Samuel Becket, in, O inominável

quarta-feira, 21 de maio de 2014

Ao telefone

- Estou...
- Olá.
- Olá.
- O que foi? O que fizeste agora?
- Nada, porquê?
- Porque estás a usar a tua voz de culpa.

Passarão mil anos do dia em que o sol tirou à pele o último milímetro da marca da aliança; somar-se-ão continentes aos quilómetros de distância física; reduzir-se-ão as comunicações aos sinais de fumo de uma tribo índia. Apagar-se-á a História da memória coletiva.
Mas nenhum tempo, nenhuma distância, nenhuma ausência, nenhum esquecimento enganará o sexto sentido de bruxo comedor de búzios pactuado com o diabo parido de todos os tarôts do universo.

Palácios



Às vezes pergunto-me se eles sabem.
Que trago a alma para este palácio de candonga onde gasto os dias.
Que dentro das gavetas, por entre folhas sérias, há restos de flores secas a adornar cadáveres de cavalos marinhos.
Que dos seus dramas só anoto o início de um verso e guardo apenas a ruga da humanidade contida.
Que estou sempre descalça quando não me podem ver os pés.
Que marco as páginas dos livros deste mundo com memórias do outro, congeladas em celulose.
E que não uso relógio porque aprisionei o tempo.


A contra-teoria

Enquanto a tempestade cruzava os céus e revolvia as nuvens e abalava a ordem das ondas do mar e estremecia os barcos e assustava as gaivotas e desfazia os nossos passos na areia de outros dias, enquanto no abrigo da baunilha das velas e dos versos das páginas abertas dos livros e do linho das fronhas e das notas do saxofone ao fundo a impor-se ao vento, enquanto racionalizava a nostalgia com o empenho metódico de quem isola componentes de fragrância num perfume raro, formulei a contra-teoria.
Não são os detalhes. Os centésimos de segundo a mais que um olhar se prende no outro, a expressão do desconforto no estremecimento do lábio inferior, a estranha inflexão dos rr no final das palavras, dois dedos que brincam um com o outro, o riso refletido nos ombros, o pé esquerdo em posição desalinhada...
É a essência. A sensação dos pés descalços no chão gatinhado, a música de memória intra-uterina, a simplicidade de um silêncio em branco, a falta de estranheza na proximidade do corpo, uma expressão que poderia ser nossa de tanto que a sabemos, em suma, a sensação rara de se ser apreendido.
Necessidade primeira, última, básica, quase sempre insatisfeita, de todos os seres humanos.

terça-feira, 20 de maio de 2014

segunda-feira, 19 de maio de 2014

sortes chinesas

O destino é um ébrio demente que se arrasta no meio de uma auto-estrada de seis faixas por onde se circula a duzentos quilómetros hora.

A Intimidade do Século XXI

E poucas vezes me senti tão despida como, durante aqueles minutos, em que, pela primeira vez em muito tempo, tive de escrever um bilhete pelo meu próprio punho.

Moby Dick

Quando Andhriminir, o cozinheiro Pirata, nos deixou a sós no convés, recostei-me na chaise long e fingi ler o livro.
Ele começou a servir-me o chá, ensaiou uma expressão concentrada e disse-me sem olhar para mim:
- Quando deixaste a planície, disseste que tinhas de partir para caçar a tua baleia. Encontraste-a?
Com os olhos presos no mesmo parágrafo, anuí com a cabeça, consciente de que não me estava a ver.
- Claro. E enterrei-lhe no coração o mais eficiente de todos os meus arpões. Morreu.
- Ainda bem. Só não entendo, nesse caso, porque é que não voltaste e porque é que este navio me parece o teu Pequod.
Continuámos, eu a fixar a mesma linha e ele concentrado em servir-me o chá.
- No regresso, tive um confronto com uma baleia maior. Roubou-me muito mais do que uma perna.
- Sofres claramente do síndroma de Ahab ... sabes que esse tipo acabou mal?
Respirei fundo e finalmente enfrentei-lhe o olhar que estava, agora, fixo no meu.
- Sei. Ao contrário de si, li o livro. E já lhe disse que me deve tratar por senhora.

domingo, 18 de maio de 2014

Das escolhas

E enquanto dividia as atenções entre a espinhosa atividade de uniformizar a tez dos dois braços e a hercúlea tarefa de me manter fresca, com o sueste desaparecido sem pior consequência que o aquecimento da água do mar, o idílio do instante proporcionou-me uma epifania:
As festas só ficam boas em duas alturas: imediatamente antes de chegar e imediatamente antes de partir.


sábado, 17 de maio de 2014

Diário de Bordo

O ex-meu senhorio da planície, Israelita da Mossad mal disfarçado de pacato Alentejano, lembrou-se que maio é o mês da minha auto-penitência e adivinhando-me sentada à mesa com o cilício apertado e um mapa comprado na loja dos chineses desenrolado sobre os joelhos, em pleno processo de escolha do novo buraco onde me enfiarei no próximo ano, decidiu telefonar-me.

- Estou a ligar-te para te pedir que voltes para cá. Todos os que te sucederam eram ainda piores do que tu e estamos cheios saudades. Além do mais, prometeste voltar.
- Para começar, terei de relembrá-lo que me deve tratar por senhora. 
- Está bem. Se voltares, chamo-te aquilo que quiseres. Voltas?
- Hummm... parece-me improvável, dado que agora sou Pirata.
- E qual é o problema? Aqui podes ser Pirata à vontade. Não nos importamos nada com isso.
- Estaria numa situação de incompatibilidade de funções. Já para não falar na questão ética.
- Oh, deixa-te disso! Não te denunciámos quando extorquias as reformas aos velhos da praça no poker, também não te íamos denunciar agora que és Pirata e só roubas outras pessoas.
- Ainda assim... ser capitã deste navio ocupa-me o tempo todo. Não estou interessada em acumular funções.
- Percebes que isso me vai obrigar a ir aí buscar-te...
- Não me diga? Em pleno oceano? Queria ver isso...

Mas nesse preciso instante, assaltou-me a memória o estranho hábito deste rapaz de me aparecer pelas costas, montado num cavalo branco, ainda antes de eu ter tempo de lhe desligar o telefone.
Foi então que ouvi os cascos do cavalo, olhei para a proa e vi aterrar no convés, de fato de mergulho vestido, o meu ex senhorio da planície. Tentei manter um ar natural.

- Não me lembro de lhe ter dado permissão para subir a bordo!!
- Faz sentido. Também não me lembro de usares esses biquinis...


Fa-la-me-de-va-gar



Speak low,
Darling, speak low
Love is a spark, lost in the dark to soon,
to soon
I feel whatever I go that tomorrow is near
Tomorrow is here and always to soon



sexta-feira, 16 de maio de 2014

quinta-feira, 15 de maio de 2014

Já não odeio o verão

Dizem-me que, lá longe, o barco continua a sair do porto nas noites de lua cheia. 
Dizem-me que ancora na mesma baía;
Que ainda são as de antes as estrelas que o dedo aponta;
E que são minhas as nuvens que ensombram a luz a um náufrago.
No silêncio denso, pesado como uma mortalha. 

Não me interessa saber o que dizem.
Não me lembro do contorno dos seus ombros,
Da cor do mar sobre uma clavícula partida,
Da melodia de nenhum búzio nos ouvidos.

O meu mundo são os beirais dos telhados 
para onde migraram as estrelas
para me ver espreguiçar com os gatos.

A minha música são os silvos da cidade
E danço-a descalça sob o asfalto

Não me interessa saber o que dizem
Marinheiro, pescador ou náufrago,
não me lembro do contorno dos seus pés,
do cheiro do chuva num abraço 
Da melodia na cantiga, 
amordaçada,
pelos gritos do vento,
na lâmina da faca
com que cortámos os fios.

Digam-lhe que já não odeio o verão







quarta-feira, 14 de maio de 2014

Herberto

- Amo ... -

Posso dizer-te que o êxtase do vinho
ou do combóio ou do cavalo rápido
me sabem bem e os amo Amo as coisas
Amo o lupanar e o alaúde e o mar

Amo os fogos-fátuos
e as virgens fátuas
Amo os leques
e os pavões reais

Amo aquilo que arde
o que voa e se abre
o que enlouquece e cresce
o que salta e se move
aquilo que bebe os ventos
e é música e contacto
o que é vasto e é casto
o que é milagre e perigo
e se espreguiça e respira
e viaja por capricho

Amo viajar descalço

Herberto Helder, in Doze Nós Numa Corda, Assírio & Alvim

Comunicações intergaláticas

Voltou o vento sueste e a sua energia louca que se entranha pelas frinchas das portas, pelos buracos das fechaduras, pelos ralos do chão e se espalha à nossa volta e nos sobe à cabeça, enlouquecendo-nos também.
Voltaste tu, que foste o meu louco de estimação, companheiro de asilo mental, bússola avariada a indicar o falso sul e que agora és apenas um morto.
Esta manhã acordei com o teu sorriso estampado no meu próprio rosto e soube, ainda antes de abrir as portadas, soube, ainda antes mesmo de abrir os olhos, que o vento que enlouquece regressou a esta terra.
A última vez foi há um ano. Instalou-se durante três dias e quase nos levou a todos à falência moral. E quando se foi embora deixou-nos embrulhados num rasto de destruição que perdura até hoje. 
É a nódoa do tapete persa que a dona da casa procura esconder estendendo o pé. 
Levei para a rua o teu sorriso de louco e passei o dia a usá-lo com o orgulho de quem exibe as jóias herdadas da avó. 
Disseram-me que me fica bem. Ou talvez tenham apenas perguntado se queria um café. O vento aloja-se nos tímpanos e faz-nos confundir as sílabas. Queremos dizer bom dia mas impõe-se-nos o final de um verso de Herberto e respondem-nos com as notas de uma ópera de Puccini.
No ano passado foi pior. No final do primeiro dia já tinha espalhado querosene pelas tábuas desse quarto que é a dignidade e atirado ao chão a beata acesa do cigarro.
Há cinzas por baixo do tapete que fica por baixo da nódoa. Mas o pé da dona da casa esconde tudo.
Até a dominar a loucura a experiência ensina a quem não tem outro préstimo que não seja aprender lições.  
Sirvo-me do vento dos doidos para te ter junto de mim enquanto durar o pretexto civilizado. 
Estás aqui sentado na minha frente, com um sorriso igual ao meu, a rir do desastre da minha existência. Dizes-me que poderia ter tido tudo se não insistisse tanto em provar que consigo viver sem nada. 
Não resisto a acusar-te de nem sequer teres conseguido sobreviver.
Antecipo-te o repúdio pela nostalgia de folhetim e faço-te desaparecer.
Mas se não te estivesse a ver, hoje, cometeria esse pecado de pobre que é beijar nos olhos as fotografias dos mortos.
Antes que te diga que tenho saudades tuas, prometes-me que me seguras a mão até que também o vento dos loucos vá embora.
E eu continuo a usar o teu sorriso. 



segunda-feira, 12 de maio de 2014

Alma mater

No final da noite, à medida que as pessoas que nos tornámos foram perdendo para as pessoas que um dia fomos, o gin foi sendo trocado pela cerveja que, mesmo em copos de plástico e três graus acima do limite mínimo de temperatura aceitável, nunca nos pareceu tão boa.
As formações humanas rapidamente se reestabeleceram pelo alinhamento original, assim se demonstrando que também na amizade, talvez até sobretudo na amizade, rege a misteriosa força da química.
E no final do final da noite, foi como se nunca tivesse chegado o dia em que, um dia, todos nós tivemos de deixar aquela cidade e iniciar uma vida a sério num outro lugar qualquer.
E tudo o que importa, todo o universo de relações, de emoções e de coisas, estava ali, uma vez mais,  em circuito fechado, representado na mesma minúscula pista de dança.
Porque os últimos vinte e dois anos não foram capazes de nos ensinar nada.

quinta-feira, 8 de maio de 2014

Eros, esse poderoso inimigo



É frequentemente desvalorizado, o esforço que exige manter o coração, assim embrulhado em papel de celofane, num estado de exílio perpétuo.

segunda-feira, 5 de maio de 2014

domingo, 4 de maio de 2014

...

"(...)
Falei dos carrosséis, a nora dos domingos, 
do paredão que rasga a sombra de um paraíso,
do destino que espreita, mudo, como uma faca,
e da noite fragrante como um bom chá mate.
(...)"

A literatura não explica tudo; a psicologia é imprestável para explicar o que quer que seja, e, assim sem respostas, eu podia jurar que, na composição desta manhã, entraram demasiadas horas.

Excerto do poema Versos de Catorze, Jorge Luís Borges, in Obra Poética, Vol. I,  Quetzal